segunda-feira, dezembro 26, 2005

ISTO

"As minha crises de dúvida em relação a Deus articulam-se quase sempre com o facto de ter criado o Homem à sua imagem e semelhança: a ideia de ser recebido à entrada do céu por um guarda-republicano, um intelectual ou um ministro em versão ampliada obriga-me a transformar a religião atribuindo ao Grande Arquitecto as soluções de recurso e o sentido de humor que as minhas tias, amantes da seriedade e da ordem (a falta de namorado conduz a soluções deste género) cuidam apanágio do Diabo. Julgo que para elas não havia grande diferença entre Salazar e o Senhor: ambos eram conservadores, austeros, inimigos da alegria e invisíveis, e o facto de terem nascido pobres, em Santa Comba Dão ou em palhas de presépio, permitia à familia olhá-los um pouco de cima para baixo, como para as criadas que casaram lá de casa e subiram a pulso do bilhete da carris ao mercedes a gásoleo, o que permitia que as soubéssemos na sala consentindo-lhes generosamente uma aparência de igualdade. Nem Salazar nem Deus passavam, no fundo, de provincianos que as circunstâncias, mais do que o mérito, tornavam ilustres, e a quem se concedia funções de governanta disciplinadora dos atrozes impulsos, de má-criação ou de abuso de compota dos jardineiros e dos filhos. Salazar e Deus, unidos para as servirem com a inabalável fidelidade das antigas empregadas, permitiam-lhes libertar-se de quando em quando de actividades fiscalizadoras demasiado cansativas, que a Pide ou os sermões do prior, capatazes à altura se encarregavam de resolver num júbilo zeloso."

António Lobo Antunes in Segundo livro de crónicas.

Nas palavras de António Lobo Antunes revi muitos dos meus pensamentos e não conseguiria fazer melhor analogia que esta nas minhas próprias palavras.
Embora me considere agnóstica dou por mim a ter uma forte tendência para acreditar em Deus quando me deparo com situações complicadas, tais como, quando o meu tio teve de ser operado a um aneurisma. Nas outras ocasiões questiono a sua existência e identifico-me com textos tal como o de António Lobo Antunes (daí eu me considerar agnóstica). O que me levou a uma conclusão: no fundo, temos necessidade de acreditar em algo superior a nós, que saiba avaliar a nossa existência neste planeta, já que enquanto seres humanos temos muito dificuldade em aceitar as críticas dos outros considerando-os muitas vezes injustas. Para além disso é bastante mais agradável pensar que quando morrermos teremos um mundo novo para descobrir em vez da simples possibilidade de termos um monte de terra em cima de nós com bichinhos a comerem-nos as entranhas e um vazio a longo prazo. Por outro lado vivemos numa sociedade que nos impele constantemente a provar aquilo que somos, como fazemos, quando fazemos, o que nos faz questionar a existência de algo ou alguém a qual não é cientificamente comprovavél.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bela dissertação!

Anónimo disse...

bem vinda... gostei!
vê se pões o menino a escrever mais...